quinta-feira, 22 de abril de 2010

Notas Sobre o Sagrado


Meu recolhimento foi iniciado no dia 13 de dezembro de 2009. Era uma manha com sol brilhando no horizonte quando cheguei no Ilê Ásè Obá Àirá no bairro Alto Novo Parque em Cachoeiro de Itapemirim.
Não era um dia qualquer, ainda assim, meu recolhimento guarda a noção que estou ligado ao candomblé a tempos imemoriáveis. Entretanto, percebo os efeitos desse tempo que se encontram inscritos nas minha trajetórias, em meus passos, em meus caminhos em meu viver. Minha relação com o candomblé vem de um tempo que me lembro e de outro que se fez saudade.
No tempo de hoje, posso dizer que conheci o candomblé por ocasião da realização de meu mestrado. Antes desse feito cheguei nos terreiros com encanto e suspeitas. O encanto me parecia algo inerente à beleza das danças e dos cânticos. Tudo que presenciava nos terreiros fazia-me lembrar de algo que, sendo passado não estava aprisionado ao passado. Sentia uma lembrança perene que informava minha vinculação à África de meus ancestrais.
Nestes termos, compreendo que o candomblé é algo inerente à minha condição humana de ser afro-brasileiro. Minha fé, manifesto de minha subversão, é africana por isso, cultuo os orixás que são aqueles que aqui estiveram antes de mim. Eles são meus ancestrais divinizados.   
A África sempre esteve presente em meu existir. Ela viveu por muito tempo nos contos de meus ancestrais, nas histórias que apreendi, nos textos e em meu esforço de me apropriar desta localização onde fiz uma morada intelectual e política. Minha África reside em mim, representa um devir. Ela é uma espécie de saudade de um tempo que sendo passado permanece como a referência que informa de onde venho, berço onde nasci. O candomblé é o verbo, a língua o vocábulo que permite me pronunciar, me escrever, me falar e me inscrever como negro.

Minha vinculação com o candomblé é fruto dessa circunstância poética e mística que pulsa em mim. Possui um estatuto de verdade que encanta meus pensamentos e me impulsiona ao texto. Mas, apresenta sempre um horizonte de enigma que interrogando levanta suspeitas – as mais belas e encantadas interrogações – sobre quem sou e o que querem de mim.
No início de meus encontros com os candomblés sempre estive dividido por essas duas instâncias. Na verdade, ainda hoje, vivo essa situação – algo que situa meu pensamento e meu sentimento – ajudando-me a trilhar novas veredas neste universo de fé e saudade, de rito e política, de mito e ancestralidade, de transcendência e existência. Minhas interrogações não são outras se não aquelas que nos fazem humanos. O verbo não diz tudo ele informa interrogando.
Sou candomblecista a muito tempo e sei disso hoje mais do que ontem. Essa afirmação não é propriamente minha ela advêm de meu Santo. Não se trata de uma alienação de um enlouquecimento. Talvez minhas palavras não possam expressar o que desejo fazer texto, mas, nem tudo é clareza de entendimento. Se é verdade que somos eternos posto que vivemos nos corações daqueles que ficam é igualmente possível supor que aqueles que nos acompanham a tempos imemoriais desejam se comunicar conosco. Meu santo também incide sobre e a partir do verbo.
A vida também é mistério, mas, sinto-me orientado, bem acompanhado, protegido. Antes também me sentia nessa condição, então pergunto o que mudou? Nada e tudo. Minha resposta é fruto de uma experiência que vivi e produzo junto a meus irmãos, ela revela a profundidade e o mistério que o sagrado exerce sobre nós. Essa cosmologia que se faz mito e se materializa em rito torna-se religião. Mas, no candomblé a experiência religiosa é um verbo que dança, que toca, que canta produzindo uma performance cheia de magia e encanto. Essa é a forma que o sagrado tem para professar seu verbo.
Não se trata de uma resposta simplesmente fazia. As resposta boas geralmente permitem boas perguntas. A conclusão a que chego é que tudo mudou quando observei que minha vida em todos os seus acontecimentos estava sendo produzida por mim, mas, eu nunca tive toda autonomia para fazer tudo.

Ao longo de tudo que vivi em meu processo de iniciação essa constatação foi a mais desconcertante. Reconhecer minha baixa estatura nestes termos foi algo que tocou-me e, ao mesmo tempo, demonstrou que minha “grandeza” está ali onde coloco meu coração e onde projeto minhas vinculações libertarias.
Minha possibilidade de crescimento passa por minha origem reinscrevendo a interrogação: “de onde venho?” a resposta já é sabida: venho da África essa que vive em mim, fruto de um passado que não posso dizer. 
Meus melhores pensamentos são aqueles que remeto às minhas origens, mesmos estas que parecem “suspeitas”, ser candomblecista é apropriar-me de algo que me pertence porque me diz respeito. Trata-se de um retorno sobre meu próprio existir. Algo que ultrapassa o imediato enlaçando o futuro ao passado para pactuar compromissos inescapáveis.
Essa constatação diz respeito ao meu Santo não somente por aquilo que ele manifesta em seus mitos e que faz parte do imaginário religioso. Meu Pai Baba Oxaguiã Mozumbê Akanjù Iorokô é aquele que me acolheu no dia em que dei meu primeiro grito. Ele me adotou e deste esse dia está ao meu lado.  Sei disso porque sei que respiro e que estou vivo.

Meu Pai Baba Oxaguiã Mozumbê Akanjù Iorokô é um bom mestre das coisas eternas, ele é aquele que me ensina o que não sei, que cuida de mim no tempo de minhas tristezas e que sorri com minhas vitórias. Meu orixá faz isso embora nem sempre eu tenha a capacidade de perceber sua presença. Em tudo ele se encontra conduzindo minha cabeça e cuidando de meu coração.
Mas, ele é mais que o imediatismo de minhas necessidades humanas. Ele é um verbo que dita as ações, que revela que aquilo que sinto como derrota é uma vitória que precisa ser melhor observada. Ele é o princípio, o meio e o eterno começo das coisas que tenho a fazer.
Meu Pai Baba Oxaguiã Mozumbê Akanjù Iorokô é aquilo que não vendo existe, aquilo que ensina o que não sei, que fala o que preciso saber, auxilia, ampara, cuida onde não posso ir. Não há recurso lingüístico para pronunciar o que é um orixá. O verbo que apreendo dessa relação transcendental não pode ser por mim pronunciado as palavras me escapam.

Quando naquela manhã cheguei para dar início ao meu recolhimento sabia que estava indo me encontrar com minha saudade. Ao chegar no barracão fui conduzido ao roncou – o quarto ritualístico onde os filhos são iniciados e se tornam Yaõs – estava determinado a cumprir tudo que essa circunstância propunha.
Não estava determinado a fazer um número em minha vida cotidiana procuro cumpri as exigências que a vida me impõe, mas, minha presença no roncou era destinada a realização de uma mudança que ainda está em processo. Buscava apenas me recolher sobre mim e para além de mim, em direção ao transcendental para conhecer um pouco mais os rumos de minha vida.
Há quem diga que essa busca é tarefa para toda existência, descobri em meu intimo que essa busca é a tarefa de nossa existência. Uma mudança sutil e absolutamente complexa. Mudar as coisas é mudar a nós mesmos e isso é um exercício difícil que deve nos ocupar mesmo reconhecendo nossa cegueira e nosso peculiar desentendimento sobre “quem somos ?”.                            

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