segunda-feira, 17 de maio de 2010

ENTRE O PASSADO E O AGORA: Diáspora Negra e Identidade Racial
Ricardo Santos Rodrigues
Ao pensar a identidade cultural, Hall (2003) num primeiro momento, estabelece uma interlocução que se contrapõem à perspectiva essencialista onde os valores culturais são mantidos como elementos impermeáveis às mudanças empreendidas pelas migrações territoriais.
O autor considera que a identidade cultural se formaliza de maneira aberta incorporando em torno de si, novas possibilidades de manifestações, que fornecem contornos diferentes à cultura. A identidade cultural se compõe de forma dialógica, dessa forma, a diáspora se apresenta como um tributo dos encontros e desencontros culturais que permitem reinventar as tradições.
Esta constatação revela a idéia de que a cultura estabelece trocas não sendo algo “puro”. Isso, fornece às tradições um conteúdo sincrético onde se pode observar de um lado, a incorporação de outros valores culturais e de outro lado, a manutenção de aspectos típicos intimamente vinculados à origem.
Hall (2003) destaca que um dos legados do império é a migração dos povos colonizados para as metrópoles. Este movimento inscreve rupturas às lógicas tradicionais de organização cultural destes povos. A metrópole torna-se o novo mundo para os povos colonizados que se encontraram sobre seu domínio político, econômico e cultural.
Esta circunstância histórica provoca conflitos que contribuem para novos entendimentos sobre as culturas, enquanto conjunto de manifestações típicas e tradicionais de um povo, e conseqüentemente, modificam os sentidos das identidades culturais dos colonizados e dos colonizadores.
Considerar a cultura como uma produção imutável, compreendendo que os sujeitos não possuem qualquer autonomia e discernimento sobre suas tradições e origens, é conceber uma noção de que as tradições são puras e “santificadas” estando impermeáveis a qualquer contato com outras performances.
Sendo assim, os sujeitos estão  completamente impossibilitados de formalizar uma identidade cultural que dialogue dentro de um movimento de diáspora onde há interlocuções, articulações, reconhecimento de semelhanças, diferenças e pontos de contato e trocas. 
 Em torno da imagem de que a cultura se mantém imutável, mesmo diante das rupturas impostas pelas migrações, o autor considera que esta visão formaliza a construção de um mito fundador.
Este mito teria a missão de fornecer sentidos para a união grupal e para a manutenção das tradições. Tendo como fundamento a ilusão de que a identidade cultural não se deixa contaminar pelas outras esferas culturais que compõem o “novo mundo”.
Esta forma de ver a cultura é basicamente a idéia de um Estado Nação homogêneo em termos étnicos e culturais e, ao mesmo tempo, a tentativa de negar ao novo mundo uma formação multicultural que conta com uma grande pluralidade étnica.
Este contorno pluralista da nação é implementado pelas migrações dos povos colonizados. Esse fato denuncia de forma radical a impossibilidade de conquistar a pureza por qualquer via. Nesse sentido, a pureza é essencialmente um sonho mortífero, um modo de colocar em movimento o racismo e de implementar o genocídio.  
 O mito fundador não assimila como positivas as idéias de que a identidade cultural articula ao tradicional o novo.  Para o mito fundador, a tradição se conservar inteiramente sem constituir formas sincréticas, mestiças. A tradição, neste ordenamento da pureza em contraposição à mestiçagem, tem dificuldades de reinventar as origens, de dialogar com a diáspora propiciando novos fazeres culturais.
Nesse enquadramento o imigrante é visto como um estranho, um desqualificado, uma bestialidade que deve estar, em todas as dimensões, subordinado aos imperativos da cultura do colonizador. Nessa perspectiva, há uma guerra onde a paz torna-se uma metáfora ou uma mentira. O lugar da subordinação produz violências e antagonismos que inevitavelmente produzem enfrentamentos e conflitos.  
Assim, podemos considerar que nessa dimensão o mito fundador cumpre um papel contraditório ele acaba por ser a-histórico por conceber uma “superioridade” fadada ao fracasso por supor que a cultura dos povos como impermeável incapaz de estabelecer trocas culturais. Apesar de todos os inúmeros aparados de segregação as misturas são impossíveis de serem evitadas. A própria lógica colonialista impõem trocas.
Por isso, contrariamente a lógica hegemônica do mito fundador, Hall sustenta que os povos negros e os povos colonizados tiveram suas culturas modificadas pelos encontros raciais, étnicos, econômicos e políticos empreendidos ao longo da história da colonização. Uma história que registrou os enredos de dominação, o sentido das derrotas, os processos de aniquilação, as mortes, as guerras etc. De alguma forma, as tradições culturais conservam em torno de seus conteúdos as marcas desses acontecimentos. Ao nos depararmos com os mitos dos orixás encontramos diversas fabulas guerreiras que explicam o significado de cada divindade, seu sentido mais amplo para as comunidades, suas filiações políticas.
Essa estrutura narrativa demonstra o caráter mutante da cultura como um conteúdo macro-social que indica diversos atravessamentos trans-culturais. Isto implica dizer que a diáspora deve ser entendida para além da dispersão territorial dos povos colonizados pela metrópole.
Essa circunstância envolve inevitavelmente e sobretudo um processo de negociação de valores culturais que envolveu e envolverá representações multiculturais, que são submetidas ao diálogos, às trocas, a concessões e aberturas, entretanto, todo esse movimento não é suficiente para anular conflitos e estranhezas.
Contudo, Hall (2003) nos permite pensar que a melhor estratégia para superar essa concepção totalizadora do mito fundador, em sua versão purificadora e conseqüentemente,  racista refugia-se na perspectiva da diáspora. A diáspora negra se produz a partir da barbárie imposta pelos interesses coloniais, mas, em sua resistência e em sua inventividade cultural inaugurou novas veredas que permitiram reinventar as tradições africanas para sustentar a existências dos povos que aqui chegaram na condição de escravos.
O candomblé, como uma manifestação afro-brasileira, é um testemunho dessa circunstancia que impõe ao Brasil uma dupla inscrição, ou seja, uma condição de ser africano e brasileiro na continuidade de nossa história. Esse tipo de concepção percebe a        diáspora negra como algo aberto às tradições africanas e européias por uma condição inevitável. Colonizados e colonizadores, senhores e escravos se complementam quer queiram ou não.
Sendo assim, o autor sustenta que não é possível um retorno ou o estabelecimento de uma tradição pura e absoluta. Essa perspectiva que contamina nossos esforços de enfrentamento ao racismo contribui para negar a diáspora em sua dimensão potencialmente transformadora. Podemos sustentar que ao buscarmos uma pureza negra, por qualquer via,     corremos o risco de perpetuar as ideologias que colocam os povos negros como culturalmente inferiores aos brancos.
Hall (2003) nos esclarece que a imigração em qualquer circunstância não é sem conseqüência para os registros culturais do novo mundo e nem para os povos que foram levadas para as metrópoles. Supor que não houve misturas e trocas é apostar num ordenamento teleológico e numa saída redentora para os conflitos culturais, ou seja, algo impossível e insuficiente para a superação das desigualdades e das opressões.
Nestes termos, o autor desconstrói a “esperança” metafórica de que para se reconhecer como negro é necessário incorporar um processo de retorno às origens africanas. A questão que se impõe é a percepção de que não nos resta um dado absoluto que fora inegociável com outras culturas. Portanto, é impossível encontrar um ethos seguro, puro e essencial que garantisse uma identidade negra completa.
Afinal resta-nos a inquietante pergunta acerca do que é ser negra ou negro. Há diversas manifestações culturais que possibilitam sentidos para a constituição desta identidade ou destas identidades? Supomos que não podemos encontrar uma resposta plena e totalitária a essa questão.
Se é possível empreender um conhecimento a partir dessa indagação, capaz de orientar nossa luta contra a desigualdade racial e o racismo, ela deve ser encontrada parcialmente, numa articulação que inclua o sentidos plurais dos grupos, das manifestações, dos sentidos dos que se nomeiam afro-descendente.
Ao mesmo tempo, consideramos necessário perceber a particularidade dessas filiações e adesões feitas pelos sujeitos. Esse posicionamento permite engajamentos, participação e diálogos multirraciais e multiculturais capazes de unirem alteridades interessadas na superação das desigualdades raciais que possuem implicações para todos.
Cada um é negro e negra na articulação e na dispersão de sentidos propiciados pela diáspora que se move articulando o novo e o velho. O autor nos esclarece que esta perspectiva fechada e essencialista, que formula um tipo de constituição identitária implicada com a pureza étnica, racial e cultural, remete os afro-descendentes a uma permanente busca do impossível, ou seja, ser completo. Esse fato favorece o processo de branqueamento e fortalece o racismo. Ninguém é completo, condição de existência impossível de ser alcançada.    
 A identidade negra na perspectiva da diáspora, como Hall nos aponta, é uma construção inacabada que sofre os efeitos do tempo e as implicações transformadoras que a história apresenta. Isto produz novos significados que foram negociados e sentidos que foram compartilhados entre as culturas propiciando aberturas e rupturas nas tradições.
Um contínuo movimento de ultrapassagem se implementa como um operador de análise dos dados culturais, para fazer com que processos de traduções e reinvenções, possam incidir sobre os conteúdos fixados pelas tradições. Fixados como pontos de referencias, mas, nunca cristalizados e fechados. Essas tradições são sujeitas às identificações em sua multiplicidade de sentidos, vinculando conteúdos que podem ser compartilhados e reinventados, sem perder sua referência étnica racial.     
Segundo Bastide, no Brasil este processo de reinvenção e tradução ocorreu com as religiões africanas e propiciou a constituição do candomblé. Os orixás, foram compartilhados nas senzalas num processo complexo e impreciso de trocas culturais entre as diversas etnias.
A historia da reinvenção das religiões africanas no Brasil e, conseqüentemente, a constituição do candomblé é uma elaboração, que entre outras coisas, ela inscreve ao longo do tempo, um processo que formaliza o africano como brasileiro e conta com a participação dos outros povos que nos compõe.
Assim, historicamente o candomblé é mais que um espaço de culto às divindades negras num mesmo lugar e sob a autoridade de um único sacerdote. Esta historicidade confirma as proposições de Hall acerca da ausência de uma essência, de um retorno a uma identidade completa, com valores culturais absolutamente autênticos e puros.
Hall nos esclarece um pouco mais sobre este pensamento mestiço que tem como ponto de partida a mutação, a ruptura a troca, a mistura e a reinvenção. Isso só é possível quando mais que lembrar as tradições incorporamos as implicações que os esquecimentos impõem como uma espécie de propulsor que permite o novo surgir.
Nossas sociedades são compostas não de um, mas de muitos. Suas origens não são únicas, mas, diversas. Aqueles aos quais originalmente a terra pertencia, em geral, pereceram há muito tempo dizimados pelo trabalho pesado e a doença. A terra não pode ser “sagrada”, pois foi “violada” e não vazia, mas esvaziada. Todos que estão aqui pertenciam originariamente a outro lugar longe de constituir uma continuidade com os nossos passados, nossas relações com essa história esta marcada pelas rupturas mais aterradoras, violentas e abruptas. (2003: 30)

O autor aponta que o que nos caracteriza como afro-descendentes não pode ser um elo perdido a ser encontrado, capaz de restabelecer o que fomos e ser lembrado integralmente. A memória não possui a faculdade de tudo lembrar e a razão, em sua versão indolente, não é capaz de empreender tal tarefa.
Aquilo que reconhecemos como tradição negra se mistura com as histórias das rupturas culturais para ser incompleta, não linear e para conservar ondulações que modificam suas expressões reinventando seus valores e sentidos. A condição de afro-brasileiros, por si só, captura esta condição de uma dupla consciência como nos ensina Gilroy (2001).
Somos afro-descendentes, ou seja, originariamente somos oriundos da África, entretanto, nos constituímos como brasileiros na continuidade de nossa existência política e social. Isso conserva revela uma história de encontro e rupturas culturais. Desta forma, a África é um ethos que não pode ser pensado como um éden que conserva o que fomos e, assim, nos permite saber quem somos nos dias atuais.
A África também sofre os efeitos dispersivos e multiculturais das diásporas. Isto faz com que o passado seja uma referência para pensarmos o presente, no entanto, ele não será capaz de comportar todas as experiências. Muito do que se passou foi esquecido ou transformado em outra coisa, que sendo nova guarda consigo traços do que fora anteriormente.
Nossa busca por justiça e igualdade reside num esforço de construção que ultrapassa nosso passado, exigindo um reconhecimento de que ele e todas as lembranças dolorosas, incluem a resistência, a rebeldia, as lutas de nossos antepassados. Nunca fomos, em tempo algum, apenas escravos.
Por isso, podemos abandonar os discursos fatalistas e seus enredos que nos colocam numa condição de vítimas. O tempo da história esclarece que os povos negros foram mais que escravos e que esta condição esta inscrita para além da imposição dos povos brancos. A escravidão é também uma ocorrência das rupturas e encontros culturais, étnicos, econômicos e políticos entre povos africanos e europeus. A escravidão engendra um comércio que integra dois continentes unidos pelo Atlântico.
 Os povos negros participaram da escravidão. No entanto é preciso reconhecer que as mulheres e homens negros tiveram sua entrada na modernidade marcada por um processo anterior onde a conquista, o genocídio, a escravidão são cicatrizes que refletem uma longa tutela de dependência colonial, subserviência e subjugação. Sobre isto Hall nos ensina:
A destinação de nossa cultura é manifestadamente o resultado do maior   entrelaçamento e fusão, na fornalha da sociedade colonial, de diferentes elementos culturais africanos, asiáticos e europeus. Esse resultado híbrido não pode mais ser facilmente desagregado em seus elementos “autênticos” de origem. (2003: 31)

Nesta perspectiva a cultural negra em seus ritos, cânticos, danças, performances entre outras coisas, deve ser vivenciada em uma perspectiva não mais puritana, fechada, rígida, teleológica e essencialista. A tradição torna-se um elemento da diáspora constituída em meio à dispersão, às trocas e rupturas culturais. Sua presença indica um processo de diálogo étnico. Assim, as tradições sofrem os efeitos do que Hall chama de transculturação que de acordo com o autor, propicia aos grupos subordinados ou marginais selecionar e inventar, a partir dos materiais transmitidos pela cultura metropolitana, outras maneiras de sustentar a cultura originária.
Nessa lógica de transito cultural formaliza-se outra forma de autenticidade que também é produzida dentro das circunstância de ser imigrante. A transculturação transmite ao dado da origem um princípio de mutação. Esse princípio subverte a lógica fixa da origem articulando a tradição aos efeitos da diáspora. Nessa articulação uma instância de originalidade surge como um indicativo que traduz, em outros termos, a origem propiciando ao grupo étnico um marco para a elaboração e vinculação de sua identidade racial.
Todo este processo é impulsionado pelo que Hall denomina zona de contato, um termo que invoca a co-presença espacial e temporal dos sujeitos anteriormente isolados por disjunturas geográficas e históricas cuja trajetórias se cruzam. Essa perspectiva é dialógica e dialética porque está interessada em como o colonizador produz o colonizado. Essa produção só é possível em mão dupla e ambos produzem o papel e a condição do outro.
Para explicitar esta questão acerca da tradição aberta, da autenticidade reinventada, e da identidade cultural híbrida que compõe o campo de análise da diáspora, Hall sugere que pensemos em termos de uma differance. Com o termo differance, o auto introduz na perspectiva da diáspora elementos que formalizam a mestiçagem como pontos que não se sintonizam com formas rígidas e fixas de manifestação cultural que buscam, entre outras coisas, uma autenticidade pura e perfeita. 
A differance não é o mesmo que diferença. A questão não é reconhecer que não somos iguais, mas, acima de tudo ultrapassar esta instância da diferença para propor o abandono dos binarismos que se erguem sobre muralhas de exclusão e dependência que constituem o “outro“ como um inimigo que deve ser aniquilado.
Neste sentido, podemos recorrer às proposições de Badiou (1995) sobre a ética. Para ele o reconhecimento da diferença não é suficiente para estabelecer uma relação ética. Em seu livro Ética um Ensaio sobre a Consciência do Mal, o autor deixa claro que reconhecer a diferença é o mesmo que reconhecer o mal, mas, isto nada diz sobre a necessidade política e social de pensar o bem. Segundo ele se não somos capazes de pensar o bem nossa ética é bélica e deseja apenas definir quem vai morrer primeiro.
A concepção ética do homem, além de ser no final das contas ou biológica (imagem de vitimas), ou ocidental (satisfação do benfeitor armado), proíbe toda visão positiva e ampla dos possíveis. O que é aqui elogiado, o que a ética legitima, é na realidade a conservação, pelo pretenso “ocidente”, daquilo que ele possui. Baseada nessa posse ( posse material, mas também posse de seu ser), a ética determina o mal como aquilo que, de certa maneira, não é com que ela goza. Ora o homem, como imortal, se sustenta a partir do incalculável e do impossuído. Ele se sustenta a partir do não sendo. Pretender proibi-lo de ter uma representação do bem, de nele ordenar seus poderes coletivos, de pensar o que pode ser, em ruptura radical com o que é, tudo isso é proibir-lhe, simplesmente, a própria humanidade. (1995: 28)

Badiou (1995) parece dialogar com Hall (2003) quando este propõe a differance, como algo que está para além do reconhecimento da diferença. Assim Hall (2003) nos esclarece que a differance estabelece a diferença como algo necessário e reconhecido pelo grupo. No entanto não se trata de um dado absoluto e acabado, mas, um produto calcado em meio aos processos de transculturação e fronteiras de contato, mediados pelos diálogos fundamentados pelas rupturas e trocas culturais. O esforço é demonstrar a inconsistência dos binarismos e muralhas que fornecem a sensação de que há uma pureza a alcançar.
A diferença, sabemos, é essencial ao significado, e o significado é crucial “à cultura”. Mas num movimento profundamente contra intuitivo, a lingüística moderna pós-saussuriana insiste que o significado não pode ser fixado definitivamente. Sempre há o deslize inevitável do significado na semiose aberta de uma cultura, enquanto aquilo que parece fixo continua a ser dialogicamente reapropriado.(2003: 33)

 Numa outra instância Badiou propõe uma ética da verdade. A verdade como um princípio que reconhece a imortalidade humana e sua capacidade de pensar e criar o novo. Colocando o humano como um ser capaz de desenvolver a emancipação e de fazer o bem. Assim ele sustenta:
Não há ética senão das verdades. Ou mais precisamente: não há ética senão dos processos de verdades, do trabalho que faz advir a este mundo algumas verdades. A ética deve ser tomada no sentido suposto por Laçam quando ele fala – opondo-se assim a Kant e á temática de uma moral geral – de ética da psicanálise. A ética não existe. Não há senão ética de. Não há efetivamente um único suspeito, mas tantos suspeitos quantos procedimentos de verdade. (...)Uma filosofia propõe-se a construir um lugar de pensamento em que os diferentes tipos subjetivos, dados nas verdades singulares de seu tempo, coexistam. Mas essa coexistência não é uma unificação, e por isso é impossível falar de uma ética. (1995: 42)

Com isso Hall nos ensina que a diáspora não é única. Não há uma única e absoluta diáspora negra, pois os povos negros nunca foram iguais nem na origem étnica ou cultural. As mulheres negras também nunca foram iguais, elas vieram de lugares distintos e vivenciaram relações de gênero particulares de cultura para cultura.
Mais que isto, no novo mundo, sofreram e sofrem os impactos de serem negras e mulheres. Poderíamos falar de differance entre as mulheres e os homens. Portanto há várias diásporas negras, brancas, asiáticas etc. que inscrevem no âmbito da cultura novas maneiras de constituição das identidades.
Identidades que se entrecruzam e se tocam para produzir outros valores e significados. Assim os significantes envolvidos nestas operações podem deslizar para formalizar novas expressões subjetivas e discursivas não fixadas em normas rígidas. Os encontros culturais estabelecem diásporas e formulam aberturas culturais que propiciam processos criativos de reinvenção e tradução para manter a autenticidade, a tradição e estabelecer uma originalidade dialógica.
A modernidade surge tendo os Estados Nação como um princípio ordenador fundamental que pretendia, pelo menos em seu território de origem, uma atmosfera de homogeneização da cultura. Em outros termos Foucault (2002) aponta que a idéia do Leviatã era um poderoso discurso que visava a estruturação da lei como um pressuposto da soberania do Estado e, mais especificamente do Rei, como legitimo herdeiro e possuidor do poder de governar.
Michel Foucault em seu livro Em Devesa da Sociedade, nos aponta que o poder político encontra na economia seu fundamento histórico como mecanismo de produção de riquezas. Mais que isto na conjugação destes fatores se constitui a soberania do Estado como uma estratégia política para criar a governabilidade. Nestes termos a política é a continuidade da guerra e este princípio localiza-se na base da formação dos Estados. O autor nos apresenta esta questão:
Se for verdade que o poder político pára a guerra, faz reinar ou tenta fazer reinar uma paz na sociedade civil, não é de modo algum para suspender os efeitos da guerra ou para neutralizar o desequilíbrio que se manifestou na batalha final da guerra. O poder político, nessa hipótese, teria como função reinserir perpetuamente essa relação de força, mediante uma espécie de guerra silenciosa. (2002: 23)

Era necessário conter as diferenças, convergir os interesses, domesticar as rivalidades, abandonar as divergências em nome da nação. O Leviatã seria esta figura trans-humana que por ser bélica e guerreira seria capaz de tecer as fronteiras das nações e fazer valer o poder do Estado; já que este possui seu exercito, sua constituição, um povo e um soberano. Com isso, de forma breve, se formaliza os Estados europeus.   
No entanto Hall (2003) nos aponta que este desejo de homogeneidade e pureza cultural e étnica que perpassa o Estado-Nação pode ser comparado a uma ilusão de ótica. Isto porque a metrópole transfigurada em seus interesses mercantis teve que estabelecer relações multiculturais.
Este exercício foi constantemente atravessado por concepções ideológicas atribuídas pelos colonizadores onde se supõem a inferioridade dos colonizados. No entanto esta circunstância, por si só, foi suficiente para colocar a metrópole como ideal a ser conquistado pelos colonizados.
Desta forma, esse paradoxo contribui para a geração de uma vulnerabilidade do ideal metropolitano de pureza e homogeneidade cultural e étnica. O território da metrópole também se configura, tal qual as colônias, como uma terra violada, marcada por rupturas culturais não podendo contar mais com um dado cultural absoluto que não tenha sido negociado e compartilhado.
Com isso podemos dizer que a metrópole também tem uma constituição mestiça. Nestes aspectos, Hall parece reinventar o apelo feito por Nietzsche em Zaratustra. Este personagem de Nietzsche anuncia a morte de Deus, ou seja, a morte de um dado absoluto capaz de explicar todos os acontecimentos localizando as ações humanas como construções a-históricas.
Zaratustra aponta que o homem está localizado sobre a história e sua vida é marcada pelas implicações do tempo e contaminadas pelas instâncias de poder. Com isso os acontecimentos que eram dirigidos para a presença de um criador, que tudo pode e tudo contém, sofrem os efeitos desta crítica de Nietzsche.
A morte do dado absoluto apresentada por Zaratustra é o que permite fazer a travessia do niilismo e portanto reconhecer a morte do homem enquanto criatura em relação a um criador. O colonizador e o colonizado, nesta lógica, acabam por se igualarem na condição de invasores.
Ambos ocuparam as terras que não lhe pertenciam e fizeram isto por seus interesses econômicos e culturais. Se a metrópole e seus cidadãos de origem reclamam dos efeitos da imigração os colonizados reclamam os efeitos da exploração metropolitana. No entanto, é preciso reconhecer que eles partem de pontos diferentes, em circunstancias distintas e localizados historicamente, politicamente e ideologicamente em pontos antagônicos.
O período de formalização do mercantilismo e, mais tarde, das grandes navegações e das colonizações inscrevem um processo histórico que engendra uma formação multicultural dos territórios coloniais e das metrópoles.
 Gilroy (2003) nos aponta que os navios ingleses que circulavam pelo Atlântico, eram sobretudo, mais que meios de transporte de mercadorias e pessoas. Eles levavam cultura, faziam intercâmbios entre as cidades européias e as cidades africanas, indianas e asiáticas. Os navios foram mecanismos de interlocução, comunicação e informação entre estes vastos territórios.
Neste aspecto Hall (2003) aponta que a colonização anuncia os processos de globalização que ocorrem atualmente. A globalização, obviamente, não é um fenômeno novo. Sua história coincide com a era da exploração e da conquista européias e com a formação dos mercados capitalistas mundiais.
Com isso Hall (2003) conclui que a diáspora é um elemento cultural que conjuga às tradições a um processo de tradução e reinvenção dos valores, das diferenças, das similaridades impondo a estes conteúdos instâncias de rupturas e trocas culturais que garantem um autenticidade renovada, uma originalidade atualizada que compõe um horizonte plural, mestiço, híbrido e crioulo.
A diáspora subverte a lógica da cultura paralisada, da tradição impermeável da atrofia dos contados culturais e étnicos. Como Zaratustra que anuncia a referência do homem como elemento da história e de sua transformação, a diáspora anuncia que não há como sustentar a ilusão da homogeneidade e da pureza cultural.
Portanto o cenário para a constituição da identidade deve se dirigir numa perspectiva que reconhece os modelos tradicionais de cultura orientados pela idéia de Nação, como elementos que perdem relevância e são suprimidos pelas globalizações em vigor.
No entanto, devemos nos lembrar que a differance estabelece um novo tempo a esta temporalidade globalizante. Um novo tempo, que na contra mão da dos mercados, percebe que a cultura tem seu lugar e sua hora ultrapassando a lógica massificante da política global.
A luta nesse cenário de aniquilação da diferença, de massificação pela ordem do mercado, de hegemonia econômica frente á política encontra-se localizada sobre a possibilidade de preservação da tradição como uma constante tradução, que dita novas formas de performances culturais pautadas pelas memórias e seus esquecimentos inevitáveis e não propriamente pelo mercado.
Neste ponto o pensamento de Hall (2003) sobre a tendência totalizante da globalização de mercado parece convergir para algumas considerações feitas por Hannah Arendt (1951) quando teoriza sobre o totalitarismo imposto pelo regime nazista. Apoiada nas proposições kantianas do mal radical, ela elabora sua teoria sobre a Banalidade do Mal encenada na lógica de organização política e funcional do nazismo.
A questão apresentada por Hannah, em Origens do Totalitarismo (1951), entre outras coisas aponta para a construção de uma atmosfera de massificação do pensamento que constitui uma ruptura com a liberdade de implementar diálogos políticos divergentes da posição do Estado.
Com isso ela aponta que há dois pilares que sustentam o regime conferindo às suas ações uma instância de legitimidade. De um lado, a ideologia que cria uma ficção que mistura o cinismo dos dirigentes e a credulidade das massas e uma mortífera lealdade ao chefe supremo.
De outro lado, o terror que abole a liberdade pública instaurando um regime de vigilância e punição a todas as vontades divergentes, visando assim anular toda a possibilidade de ação contrária ao interesse do sistema.
Estes dois pilares do totalitarismo possibilitam a constituição do homem como um ser sem valor, um supérfluo, pois nesta lógica se conjuga a destruição da pessoa jurídica e moral fazendo com que o carrasco e a vítima tenham uma relação de cumplicidade. De acordo com Hannah Arendt em a Banalidade do Mal:
A cumplicidade conscientemente organizada de todos os homens, nos crimes dos regimes totalitários, é estendida às vítimas e, assim, torna-se realmente total. A linha divisória entre o perseguidor e o perseguido, entre o assassino e a vítima, desaparece à medida que os internos dos campos de concentração eram obrigados, pela SS, a colaborar, forçados a agir como assassinos. Morta a pessoa moral, esses homens foram transformados em mortos – vivos. (2005: 37)

A ideologia totalitária é destacada por Hannah Arendt como sendo a “lógica de uma idéia” um termo que serve para apontar um movimento de ultrapassagem da realidade e, ao mesmo tempo, um entendimento de que a idéia sobre a realidade é no ordenamento ideológico a própria realidade.
Isto contribui para uma ilusão onde tudo é extraído da idéia como se ela fosse coerente com a realidade por ser fruto de uma lógica. Toda esta atmosfera apresenta o homem como um ser supérfluo, ou seja, um ser que não pertence ao mundo de forma alguma.
Segundo Hannah (2005) estes homens não possuem raízes e portanto não tem no mundo um lugar reconhecido e garantido pelos outros o que os tornam sem passado e, conseqüentemente, sem tradição. Neste ponto o totalitarismo se assemelha à globalização de mercado que formaliza um processo contínuo de desarraigamento, isolamento e solidão, onde o consumismo torna-se o ponto de encontro das massas.
Tudo é profundamente efêmero e o supérfluo acaba por ser uma expressão humana. A diáspora permite um entendimento onde a tradição não é um dado totalitário, ao mesmo tempo, que ao contrário deste modelo de globalização, reconhece sua importância como um elemento que mesmo sofrendo mutações mandem-se como um traço, uma marca, uma inscrição das origens. Afinal a tradição permanece mesmo no pensamento da diáspora.
A África entra nesta discursão como um significante que confere às produções negras a dimensão da possibilidade de manter as tradições em interlocução com a diáspora e, conseqüentemente como um objeto que tem sentido e importância para os dias atuais, na medida em que pode ser tocado pelos processos de tradução e reinvenção cultural.
Desta forma, a globalização possui um outro sentido que não busca aniquilar o tradicional para impor o efêmero inscrito na estrutura capitalista de consumo. Esta outra globalização que instaura processo de diálogos multiculturais, que se contrapõe à massificação do mercado, que reconhece as particularidades étnicas e culturais e que busca estabelecer trocas confere à diáspora uma dimensão onde o que é local acaba por ter importância global.
Apoiado nas perspectivas de Fanon (1952), Hall (2003) cita o movimento Rastafári como responsável por um processo de tradução da cultura negra. Esse movimento inaugura algo novo que torna negra, de forma irremediável, a Jamaica e outras sociedades caribenhas.
Isto se deve ao retorno às origens que o Rastafarismo impulsionou. Um retorno a “um nós mesmo” diferente do que fomos, uma nova expressão para nos fazermos, uma tradução do que a tradição ou o passado; nos informa sobre o que éramos.
Isto contribui para uma leitura diaspórica da África e do povo jamaicano fazendo com que fontes perdidas do passado fossem novamente produzidas, reinventadas num movimento de retorno capaz de atualizá-las como instrumento de reflexão. Todo este movimento, segundo Hall (2003), parti de uma leitura contemporânea e subversiva da bíblia.
Ler a bíblia atravéz de sua tradição subversiva, sua não ortodoxia, seus apócrifos, lendo-a ao revés, de cabeça para baixo, voltando o texto contra si mesmo. A Babilônia de que ele falava, onde as pessoas ainda sofriam, não era o Egito, mas Kingston e depois, quando o novo foi sistematicamente estendido para incluir a Polícia metropolitana, os bairros de Brixton, Handsworth, Moss Side e Notting Hill. (2003: 43)

Esta leitura que reinventa os entendimentos “imediatos” da bíblia fornece uma forma subversiva e atualizada de lê-la. A perspectiva dogmática e tradicional  é, parcialmente abandonada, para permitir uma interpretação inovadora, atualizada e traduzida da bíblia.
Isso inscreve uma compreensão negra e atualizada que se enlaça àquilo que, sendo tradicional, torna-se igualmente novo. Hall (2003) concorda com Fanon (1952) quando este admite a necessidade de descolonizar as mentes dos colonizados para formalizar outros conhecimentos sobre o passado. A colonização nunca foi somente territorial, afinal nós representamos nossa territorialidade com nossa presença político-cultural. 
Fanon (1952) nos lembra em Mascara Branca, Pele Negra que: “Todo povo colonizado – isto é, todo povo no seio do qual originou-se um complexo de inferioridade, devido ao extermínio da originalidade da cultura local – tem como parâmetro a linguagem da nação civilizadora, ou seja a cultura da metrópole. (1952:18)


   
                             
                                                        


   
                             
                                                        

   
                             
                                                         

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