Me solicitaram uma fala sobre o corpo e a linguagem na Faculdade onde leciono. Meus alunos desejam um debate entre o que a Psicanálise pode disso falar, ou fazer falar em contraposição àquilo que o saber medico silencia com sua clínica marcadamente racionalista.
O que escrevo aqui é apenas um esboço do texto que irei fundamentar melhor mais tarde. Nesse sentido, há uma certa liberdade, uma certa rebeldia nas linhas que se seguem.
Quero retomar a perspectiva racionalista inscrita por Descartes no início da modernidade. O pensamento cientifico surge a partir da duvida se formaliza a partir do método e se fundamenta em teorias e conceitos.
Descartes – um dos principais filósofos da modernidade – sustenta que a duvida inaugura um procedimento de investigação e produção de conhecimento onde o cogito formaliza algo novo: “penso, logo existo”. Essa proposição parece banal nos dias atuais, mas, é fruto de um amplo processo de emancipação intelectual e social.
É exatamente esse processo engendrado por inúmeras transformações que é responsável por uma nova ordem pública revelando que a ciência não é inocente. A ciência – essa que para muitos se torna uma narrativa mitológica que tudo sabe ou pode vir a saber – é potencialmente a maior expressão sócio-política de nosso tempo.
Talvez dessa percepção advenha a critica ao paradigma da ciência na modernidade produzida por Boaventura. Entre muitos aspectos o português brilhante – entre nós brasileiros gostamos de menosprezar a inteligência de nossos colonizadores – aponta que o racionalismo inaugurado por Descartes e intensificado por outros pensadores tem tornado a ciência indolente.
Cabe retomar a suposição feita por Rousseau acerca da ciência. Esse pensador supõe a necessidade de uma Contrato Social como mecanismo de organização da vida pública na nova ordem que se inicia com a Revolução Francesa que seu pensamento tanto influenciou.
Ele indaga se a ciência não haveria de ter virtude. Essa indagação é relida, ou melhor reinventada por Boaventura que interroga se a ciência – sendo uma produção de conhecimento e um artefato de poder-saber – não teria implicações sociais. Por isso, o autor a partir de sua crítica ao racionalismo e ao positivismo propõe pensarmos um novo paradigma para sustentarmos nossas produções cientificas: “conhecimento prudente para uma vida descente”.
Afinal nada mais tecnológico e cientificamente elaborado que nossos inúmeros caos e nossas sofisticada maquinaria de guerra e extermínio que perpassa nossa existência. Há dados interessantes desconcertantes que revelam esse paradoxo onde o saber cientificamente elaborado não contribui para um mundo melhor.
Os dados da insegurança alimentar são uma boa demonstração disso. Somos reconhecidos como um pais continental onde tudo que se planta germina com abundancia temos orgulho cívico de sermos o celeiro do mundo e fazemos agro negocio com extrema competência e tecnologia; entretanto, milhares de brasileiro vivem o flagelo humano, político, social da “fome” e, conseqüentemente, isso compromete nosso futuro, nossa justiça, nossa democracia, nossos melhores valores.
O problema não é a escassez de alimentos, mas, a pobreza generalizada materializada em baixos rendimentos per capita de inúmeras famílias. Nessa direção, venhamos e convenhamos, não há corpo que resista. Além disso, é preciso reconhecer que esses milhares a que me refiro não são qualquer um. Uma rasteira análise acerca da questão racial brasileira revela de forma monstruosa que a fome tem cor nesse país e isso demonstra que a maior parte da população brasileira sobrevive em meio á insegurança alimentar. Essa população é afro-descendente e esse fato ratifica o secular racismo e a brutal desigualdade racial brasileira.
Esse impasse é político e igualmente cientifico! Foucault já demonstrou que em nossas sociedades modernas saber e poder são indissociáveis e num livro intitulado Em Defesa da Sociedade que reúne inúmeras transcrições de suas aulas no College de France, o autor sustenta que o racismo é o mecanismo adotado pelo Estado Liberal para reinventar o poder totalitário do monarca e assim, fazer morrer aqueles que se tornam monstruosidades.
A Globalização em sua manifestação mortífera e igualmente tecnológica e cientifica deixa isso claro. Os mísseis teleguiados caem na cabeças de uma humanidade entendida em todas as suas expressões como inferior à humanidade ocidental. Essa humanidade "monstro" que recebe esses artefatos mísseis são aqueles que chamamos fundamentalistas, islâmicos, gays, de cor, estranhos logo não são quaisquer um. Eles são aqueles que Foucault faz alusão em suas aulas: aqueles que são deixados à beira das promessas liberais e cientificas, deixados para morrer, deixados aos “cuidados” da lógica higienista que busca a purificação, um ideal de beleza, um corpo em suas performances que não lembre nada que não seja ocidental.
Esse movimento mortífero que nos enlaça numa temporalidade monstruosa tem na ciência e em seu ideário racionalista um ponto de ancoragem que não pode ser negado. Esse nosso tempo se configura como um locus farmacológico e silenciado – o que não significa silêncio. O que se busca silenciar é a desordem absolutamente necessária manifestada nos movimentos de questionamento à ordem vigente. Eles são quase sempre compreendidos como terroristas.
O locus farmacológico que funda uma temporalidade mostro incide sobre o corpo que é uma representação de nossa existência. Nesse sentido, incide sobre o espírito intelectual e se manifesta como mais um aparato de controle e opressão. Não somos corpo sem pensamento e estamos pensando mal. Os medicamentos se apresentam como a resposta aos inúmeros sintomas que se inscrevem em nosso dia a dia. Nosso horizonte existencial e de produção da realidade é atravessado por uma ininterrupta produção de novos sintomas, de novos caos, de novas doenças, de novos mal-estar e de novos remédios a serem consumidos. É obvio que nessa direção se convoca novos saberes. O que será que esses saberes indolentes sabem e desconhecem?
A lógica racionalista e positivista, que apresentou uma nova perspectiva civilizatória e libertaria para a humanidade, capturada por injunções múltiplas e antagônicas desenvolve um pensamento que parece desconhecer as fronteiras de nossos corpos. Trata-se de uma racionalidade cibernética, com uma autonomia e uma invisibilidade ficcional e com uma eficiência assustadora que opera a construção da realidade como se vivêssemos um delírio coletivo.
O delírio está no ponto em que não enxergando a realidade e não podendo dela falar, ainda assim, somos por ela mobilizados e conduzidos sem saber por onde estamos caminhando. Acho que esse delírio é semelhante á ficção descrita por José Saramago em seu livro Ensaio Sobre a Cegueira. Nesse texto, Saramago faz alusão a uma cegueira, que a exemplo de uma gripe, contamina qualquer um colocando em movimento os aparatos de controle do Estado para evitar a proliferação do mal. Entretanto, como fazer quando não sabemos algo nesse mundo onde a razão personificada na ciência exige tudo saber: enlouquecemos.
É isso que ocorre quando a ciência desconhece que seu saber não pode tudo saber. Nos campos de confinamento dos cegos de Saramago não haviam só corpos, mas, todos os complexos humanos. Os corpos são adestrados e tendem a se docilizar dentro dos ordenamentos disciplinares de nosso tempo. Esses ordenamentos incidem sobre os corpos e sobre os modos como pensamos. Ainda assim, há algo que escapa à razão em sua versão indolente e totalizadora.
Nossos corpos não estão fadados apenas ao adestramento comportamental de condutas e performances supostamente mais adequadas. Somos mais que isso. Meus ancestrais vieram para o Brasil como escravos. Eles eram compreendidos e pensados como apenas corpos úteis ao trabalho colonial. Mas, na contra mão desse ordenamento disciplinar trouxemos cultura, religiosidade e inventividade para dar conta de enfrentar a barbárie da escravidão.
Esse corpo escravo e bestializado por essa atrocidade não é semelhante ao corpo negro em sua dimensão física e cultural. Entretanto, o corpo também é atravessado pelos discursos, sendo mais que fisiologia; logo, os discursos racistas produzem representações distorcidas e pejorativas sobre o que somos enquanto afro-brasileiros.
É nesse ponto que a Psicanálise me parece importante. Ela advêm da descoberta de Descartes e da elaboração do “penso logo existo”. O pensamento psicanalítico é contemporâneo do pensamento racionalista e positivista que engendra um fazer-saber-poder científico monstruoso encarnado numa lógica farmacológica e bélica de controle tecnológico.
Todavia, a Psicanálise subverte a perspectiva cartesiana ao sustenta que “onde eu também não penso, onde eu desconheço meu pensamento eu também existo”. A descoberta de Freud é que nossa racionalidade comporta uma inscrição de dessaber, ou seja, ela sabe desconhecendo algo que se possa tomar como consciência da realidade. O inconsciente não é uma irracionalidade, mas, uma suposição de que não podemos tudo saber.
Nesse sentido, há uma critica à ciência em sua aspiração racionalista e positivista. Essa critica não é semelhante à realizada por Boaventura, posto que, se remete a uma dimensão clínica. Todavia, ambas não são inconseqüentes. Elas contribuem para uma concepção de que o pensamento é uma linguagem que nos permite saber, viver, produzir mas não há completude nem pessoal e nem social.
Nossos corpos não podem ser plenos de toda a beleza e juventude essa não é uma denuncia à limitação das cirurgias plásticas e seus ideários estéticos, ou algo relativo ao DNA que pode descortinar horizontes de imortalidade, ou mesmo um ato de oposição às pesquisas de Células Tronco que podem, enfim, vencer todas as doenças.
A coisa mais perecível em nós não é nosso corpo é nossa linguagem. A coisa mais saudável que temos não é nosso corpo é nossa linguagem. Algo que nos remete à língua que usamos para comer e falar, mas, produz para além dessa dimensão física uma metáfora. Essa metáfora possui uma dimensão clínica importante cuja Psicanálise desbrava descortinando novas veredas do pensamento. A Psicanálise sabe que o corpo se faz a partir da linguagem conhecimento insuficiente, mas, que rompe com a totalização do pensamento médico, biológico e fisiológico.
Não diria com isso que o corpo fala, mas, aponto que o corpo é falado no caso a caso, na língua própria de cada um. O corpo não deve ser confundido em seu sentido universal e dicionaresco como a ciência deseja fazer encerrar. O corpo tem uma materialidade metafórica e poética quando abordado em sua dimensão particular. Por isso, é necessário escutá-lo dentro da premissa do significante para assim, apreender a linguagem e o pensamento em sua dimensão inconsciente.
Fez meu pensamento caminhar, buscando lógica onde não há, exibindo imagens desnecessarias a minha vã imaginação..cheia de achismos bem quadrados, mas que me pede para sair da caixa e se expandir desta vez livremente, mas com o conhecimento... que há de se fazer em breve...
ResponderExcluir? ! :D