terça-feira, 27 de abril de 2010

Acerca da Questão Racial Brasileira



A Questão Racial Brasileira: Horizontes Psicossociais que atravessam a Constituição da Identidade Negra

Ricardo Santos Rodrigues[i]

Resumo: Nesse artigo, buscamos apontar os aspectos psicossociais, que tornam a questão racial no Brasil e a constituição da identidade negra, processos atravessados pela estrutura política brasileira. Nessa direção, apontamos que o racismo está ligado aos mitos da democracia racial e do povo pacífico, bem como à formalização da identidade nacional. O produto dessas ideologias incide sobre a constituição da identidade negra, permitindo que negros e pardos busquem os ideais hegemônicos do branqueamento para terem maiores oportunidades de ascensão social. Toda essa estrutura encontra no Estado um de seus principais operadores. Ao longo do texto vamos apresentar alguns relatos colhidos por ocasião da realização da dissertação de mestrado intitulada: Identidade Negra em Terreiros de Candomblé em Belo Horizonte: Um Estudo Psicossocial a Partir do Discurso de Lideranças Religiosas, onde realizamos entrevistas abertas com mães e pais de santo de diversos terreiros da capital mineira. Essas entrevistas foram posteriormente transcritas, categorizadas e analisadas. Utilizamos a metodologia de Estudo de Caso para compreendermos os discursos de nossos entrevistados e para localizarmos nosso objeto de estudo. Todo o processo de pesquisa foi orientado pelo Prof. Dr. Marco Aurélio Máximo Prado sendo aprovado pelo Comitê de Ética em pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais. 
Abstract: In this article, we point out the psychosocial aspects, which make the racial issue in Brazil and the formation of black identity, processes crossed by the Brazilian political structure. In this direction, indicate that racism is linked to the myth of racial democracy and people's peaceful, and the formalization of national identity. The product of these ideologies focuses on the formation of black identity, allowing black and brown seek the hegemonic ideals of money to have greater opportunities for social ascent. All this structure is in a state of their main players. Throughout the text we will present some reports collected at the completion of the master's dissertation titled: Black Identity in terraces of Candomblé in Belo Horizonte: A Psychosocial Study From the speech of Religious Leaders, which hold open interviews with mothers and fathers of holy of several terraces of mining capital. These interviews were then transcribed, categorized and analyzed. We used the methodology of Case Study to understand the speeches of our interviewees and to locate our object of study. The whole process of research was directed by Prof. Dr. Marco Aurélio Máximo Prado being approved by the Ethics Committee in search of the Federal University of Minas Gerais.
Palavras-chave: Racismo, Contínuo de cor, Miscigenação, Processo de branqueamento e Identidade Negra.
Key-words: Racism, of continuous color, miscegenation, bleaching process and Black Identity.

Nunca perdi a esperança de que essa grande transformação viria a ocorrer. Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, ou por sua origem, e se elas podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar, pois o amor chega mais naturalmente ao coração humano do que seu oposto. A bondade humana é uma chama que pode ser oculta, jamais extinta.
Nelson Mandela.
 I – Introdução:
Meu interesse em estudar a questão racial brasileira encontra-se articulada às minhas reminiscências. Possivelmente, se meus pais não sofressem as injunções racistas que permeiam os casamentos inter-raciais, minha relação com essa temática não teria a mesma importância.
O reconhecimento dos impasses nas relações entre negros e brancos encontra-se na base da constituição de minha família. Portanto, este é um conteúdo subjetivo importante para mim e, por extensão, para as minhas filiações políticas, sociais e culturais.
É oportuno apontar que em muitos dos encontros propiciados pela realização de minha dissertação de mestrado não fui reconhecido como negro sendo surpreendido por falas como: “você tem pouco pigmento”.

II – O Nó da Questão: O negro e o Racismo Brasileiro

De fato minha pele parda, meus cabelos lisos, meus olhos claros permitem que eu possa passar por branco. Este tipo de reconhecimento demonstra que o ideal estético da brancura fundamenta-se no cotidiano das relações sociais formalizando-se como um dispositivo que produz exclusão e racismo. A questão que se apresenta pode ser elaborada da seguinte maneira: como se constitui a identidade negra?
Em nossa sociedade, a questão racial também é uma questão de pigmentação, visto que muitas das representações racistas se formulam a partir de um contínuo de cor. Essa realidade contribui para negar a origem negra remetendo-nos ao processo de branqueamento como atributo desejado pelo ideal de purificação que circunscreve as práticas racistas em nosso país.
  Nesta perspectiva, NOGUEIRA (1985) realizando uma distinção entre preconceito de origem e de marca, sustenta que o racismo brasileiro exclui os sujeitos a partir da cor da pele. Isso possibilita a elaboração de um contínuo de cores que vai do mais claro ao mais escuro.
Essa ocorrência dificulta a constituição da identidade negra e fortalece o racismo porque parte do princípio de que a origem negra refere-se a um traço de inferioridade que deve ser negado. Esse modelo de classificação racial contém concepções ideológicas e subjetivas que conduzem negros e pardos a aderirem ao processo de branqueamento.
Os pardos, diante dessa realidade, tendem a legitimá-la negando sua origem negra. Todavia, essa possibilidade é mais complexa para os afro-descendentes que possuem traços negros mais acentuados. Ainda assim, ambos em virtude das injunções racistas, são compelidos a se submeterem ao ideal de embranquecimento brasileiro, buscando por essa via maior reconhecimento e possibilidades de ascensão social. Por isso, GOMES (1995) argumenta que:
Essa dificuldade em identificar quem é negro no Brasil, a existência de diversas nuances de cor em nossa sociedade, o difícil processo de construção da identidade racial por parte dos negros e seus descendentes é um fato que repercute em diversas instituições da sociedade e contribui para perpetuação do racismo e da discriminação racial. (GOMES, 1995, p. 89).

Nesse sentido, MUNANGA (2004) aponta que os mestiços acabam por serem reconhecidos como “brancos” em função de suas características físicas que disfarçam seus traços negróides. Isso ocorre a partir do contínuo de cor, em que os sujeitos que se encontram mais próximos do ideal da brancura, acabam por serem mais valorizados e reconhecidos positivamente. Nesse sentido, a origem negra encontra-se desvalorizada e pode-se configurar como um obstáculo para a ascensão social.      
Ao contrário dos Estados Unidos, o Brasil não apresenta uma rígida linha de cor para separar, caracterizar e diferenciar negros e brancos. Nosso princípio assimilacionista conjuga mitos de mistura e origem entre negros e brancos para explicar nossa configuração racial. A realidade mestiça de nosso povo é vista no cotidiano de nossas relações como uma prova de cordialidade[ii] e de democracia racial.
MUNANGA (2004) constata que o contínuo de cor como modelo classificatório produz uma zona flutuante que acaba aprisionando os afro-descendentes em considerações racistas inferiorizantes e pejorativas, contribuindo para a estigmatização do grupo racial. O autor sugere que essa zona flutuante favorece a exclusão dos negros e pardos com fortes traços negróides. Segundo ele, isso implica em dificuldades para a constituição da identidade negra e racial da população afro-brasileira:
A maior parte da população afro-brasileira vive hoje nessa zona vaga e flutuante. O sonho de realizar um dia o “passing” que neles habita enfraquece o sentimento de solidariedade com os negros indisfarçáveis. Estes, por sua vez, interiorizam os preconceitos negativos contra eles forjados e projetam sua salvação na assimilação dos valores culturais do mundo branco dominante. Daí a alienação que dificulta a formação do sentimento de solidariedade necessário em qualquer processo de identificação e de identidade coletiva. (MUNANGA, 2004, p. 96).
             
Para MUNANGA (2004), o racismo brasileiro possui caráter segregacionista[iii] ao excluir os afro-descendentes a partir da cor. Essa constatação desmente a tese da democracia racial que se apóia sobre a miscigenação e sobre o assimilacionismo cultural de nossa sociedade. Há um julgamento de valor sobre a origem racial, que determina lugares e oportunidades sociais diferentes para brancos e negros. O sonho de realizar o passing e a submissão aos valores brancos incide sobre o processo de constituição da identidade negra. Essa questão anuncia o entendimento de que o negro deve tornar-se branco[iv].

Assim, características como a cor da pele e os cabelos crespos são elevados à condição de estigmas. Essa circunstância demonstra que os portadores dessas características étnicas e raciais serão marginalizados e excluídos. Essa consideração fortalece o desejo de passing, que não é possível a todos os afro-descendentes. Essa realidade explicita o caráter perverso do racismo brasileiro que impõe o processo de branqueamento como uma “estratégia” de reconhecimento e ascensão social.               
Segundo SILVA (1995), considerando-se a natureza permanente das características étnicas e raciais, o racismo tende a se fortalecer em nossas relações sociais. Nesse sentido, as diversas gradações de cor utilizadas no Brasil, que servem para definir os lugares sociais a serem ocupados pelos afro-descendentes, contribuem para aumentar as desigualdades raciais entre negros e brancos[v].
Contudo, observamos que, nas piadas, nos atos falhos, em momentos de conflitos a subordinação revela-se como sendo o lugar dos negros. Essa contradição revela o projeto higienista brasileiro em seu esforço de embranquecer o povo brasileiro. Esse ideário foi fortemente buscado pelas elites brasileiras como mecanismo para purificar o sangue negro e indígena, garantir a ordem, produzir o progresso e responder adequadamente ao eurocentrismo.
Ao analisar a história da identidade nacional podemos constatar que desde a Primeira República, a busca de uma identidade étnica racial única para o país tornou-se uma preocupação para os intelectuais brasileiros. Esses estudos buscavam converter a pluralidade étnica e a diversidade identitária brasileira em uma unidade nacional.
Podemos perceber que o racismo e o processo de branqueamento são herdeiros desse esforço de superação da diversidade racial e, em conjunto, essas considerações higienista querem demonstrar que as mazelas brasileiras são produzidas pela suposta inferioridade racial desses segmentos populacionais. Algo inscrito na perspectiva da “teoria” da degenerência que com seu ideário eugênico permeou a psiquiatria brasileira no início do século XX, elaborando o entendimento de que os negros possuem tendência orgânica à loucura e à criminalidade.
Nesse sentido, um de nossos entrevistados aponta que o racismo faz com que parte da população negra desvalorize sua origem racial, sinalizando que no Brasil, reconhecer-se como negro é assumir uma identidade contra-hegemônica. Esse fenômeno possui uma dimensão política que subverte as imposições racistas. Nesse sentido, há um processo que pode atingir uma dimensão coletiva impondo-se como um projeto político do grupo racial, que visa deslegitimar a dominação em seus objetivos, sentidos e significados·. Contudo, o entrevistado argumenta que:
Tem negro que não se assume porque a questão do racismo é essa, fazer com que a gente não se sinta bem como negro. Ah, eu não! Sou mulato. Não sou pardo. Sou cafuzo, sou mameluco. Cada um que ser uma coisa. (...) Que dizer é uma coisa horrível isso, rapaz. Uma coisa horrível isso!

O entrevistado nos informa que o racismo deseja que o negro não se sinta bem por ser negro. Ele aponta que há um desejo de ser (...) “mameluco, mulato, pardo, cafuzo. Cada um que ser uma coisa”.  Isto no conduz a sustentar que sendo a raça um termo social, os traços como a cor da pele, o formato do nariz, a espessura dos lábios e os cabelos crespos, que servem para classificar as pessoas como negras, só fazem sentidos dentro de uma ideologia racial que tem como valor estético a brancura. Nesse sentido, SOUZA (1983) aponta que:
É a autoridade da estética branca quem define o belo e sua contraparte, o feio, nessa nossa sociedade classista, onde os lugares de poder e tomada de decisões são ocupados hegemonicamente por brancos. Ela é quem afirma: o negro é o outro do belo. É essa mesma autoridade quem conquista, de negros e brancos, o consenso legitimador dos padrões ideológicos que discriminam uns em detrimento de outros. (SOUZA, 1983 p. 29).

  Esse entendimento explicita o nó da questão: Quem é negro? Quem se identifica como negro? Como se formaliza essa identidade? No entanto, para responder a essas indagações é preciso reconhecer que o termo raça não corresponde a uma realidade natural, mas, a uma série de concepções políticas, culturais, sociais elaboradas ao longo da História.
Nessa perspectiva, GUIMARÃES (1999) sustenta que o racismo se configura como uma tentativa de restringir o cultural ao biológico, ou seja, explicar um status social a partir de uma base ideologicamente formulada para naturalizar as hierarquias raciais. Por isso, para GOMES (1995, p. 54), o racismo representa “a supressão categórica de uma determinada cultura vista como subordinada. Pode-se, todavia, ser compreendido como a imposição de valores da cultura dominante aos participantes das culturas que se pretende dominar”.

A autora nos lembra que o termo negro encontra-se cerceado por idéias pejorativas, mas esse termo também remonta histórias de lutas no processo de constituição da identidade racial. Reconhecer-se negro, assumir essa nomeação, identificar-se com essa terminologia é vivenciar uma dimensão política e cultural. Segundo GOMES (1995, p. 45), “o termo negro nos remete a sujeitos sociais e históricos, às diversidades raciais e culturais” e, evidentemente, às lutas implementadas por essas coletividades.
Contudo, não é possível negar a resistência dos significados pejorativos remetidos aos afro-descendentes. De acordo com GOMES (1995), essas considerações desumanas atribuídas aos negros remontam no presente o histórico de escravidão e todas as suas implicações psicossociais. Esse fato contribui radicalmente para a perpetuação das desigualdades raciais.
Entretanto, a autora salienta que o Movimento Negro utiliza o termo negro como um instrumento que visa ressignificar politicamente e simbolicamente o lugar dos afro-brasileiros. Ela demonstra que há uma intenção política por trás do uso dessa terminologia que busca:
Não mais relacionar o negro a uma definição carregada de preconceito ou à simples questão de cor de pele (...), mas remetê-lo a uma origem racial, valorizando os atributos físicos e culturais daqueles que representam 45% da população brasileira. (GOMES, 1995, p. 46).
        
Todavia, os inúmeros dados sociais demonstram que a imensa população de origem negra encontra-se em circunstâncias de miserabilidade. Isso pode contribuir para que os afro-brasileiros passem a compreender que sua origem racial é responsável pelos seus problemas sociais e econômicos. Algo que favorece a entrada no processo de branqueamento e fortalece o racismo. Nesse sentido, a negação da origem racial pode ser compreendida como uma alternativa de ascensão social para esse segmento que, cotidianamente, é coagido pela violência imposta pelo racismo.

Seguindo essa direção, podemos perceber que o mito da democracia racial é o manifesto de uma nação determinada a negar seus antagonismos sociais, políticos e raciais. Assim, podemos compreender que a ideologia da brasilidade mestiça que une todas as raças e etnias encontradas na tese de Gilberto Freyre, formaliza uma imagem, contraditória e paradoxal dos discursos identitários da nação.
Isso ocorre porque essa brasilidade mestiça – que sintetiza todas as raças e etnias formadoras do povo brasileiro – não garante igualdade para aqueles que apresentam traços físicos acentuadamente negros e indígenas. Essa realidade reafirma a posição de MUNANGA (2004), que considera que a misturas de raças produz uma zona flutuante onde os negros buscam um passing. Nesse sentido, OJO-ADE (1999) argumenta que:
O paraíso racial, do qual alguns já se referem sutilmente, é uma camuflagem, uma invenção da imaginação hipócrita. Melhor ainda, seria uma utopia dos privilégios, o que para os negros é um pesadelo. A miscigenação tem matado a consciência de muitos negros. (OJO-ADE, 1999, p. 42).
 
Nessa perspectiva, MUNANGA (2004) argumenta que a “democracia racial” é apenas uma retórica para fundamentar o racismo, endereçar os afro-brasileiros à subalternidade e impelir a adesão ao processo de branqueamento. Todos esses processos exigiram que os afro-brasileiros abandonassem suas origens raciais e culturais. Segundo o autor o mito da democracia racial representa:
A idéia de convivência harmoniosa entre os indivíduos de todas as camadas sociais e grupos étnicos, permitindo às elites dominantes dissimular as desigualdades e impedindo, os membros das comunidades não-brancas, de não terem consciência dos mecanismos de exclusão da qual são vitimas na sociedade. (MUNANGA, 2004, p. 89).

Assim, o autor considera que ser negro no Brasil é se haver com uma atmosfera de exclusão que atua em todos os campos da existência humana. O tornar-se negro, como alternativa de enfrentamento do racismo, propõe que a constituição dessa identidade deve ser entendida como um projeto político de superação das circunstâncias que determinam as desigualdades raciais.
Esse projeto de transformação social deve reconhecer que o racismo é uma linguagem que incide sobre a realidade coletiva formalizando mentalidades e procedimentos elaborados historicamente. Isso constitui o discurso e as práticas racistas que, em meio aos ideários higienistas e eugênicos da sociedade moderna, adentram no campo das Políticas Públicas elaboradas pelo Estado Liberal. Essa constatação revela que o Estado se utiliza do racismo para exercer sua soberania e controlar a vida pública.  
 
III – O lugar do Estado na operacionalização do Racismo:
Em sua análise sobre a genealogia o poder, FOUCAULT (1999) considera que o racismo de Estado surgiu no bojo das transformações políticas do século XIX. Naquele momento, o sistema monárquico foi substituído pela noção de Estado Liberal de Direito. Todavia, o autor aponta que o Estado Liberal de Direito reinventa a partir do racismo o direito de “vida e morte sobre o vassalo”, ou seja, o poder absolutista dos soberanos. Dessa forma, o Estado estabelece uma versão atualizada do poder absolutista que propõe “fazer viver e de deixar morrer”.

Para o autor, por volta do século XVIII, o poder disciplinar – como instrumento de controle e dominação – vai sendo incorporado ao que ele denomina biopoder. Esse novo poder, diferente da disciplina que se dirige ao corpo – à vida dos homens ou ao homem-corpo –, busca se constituir na dimensão do homem ser vivo ou do homem-espécie.
Neste sentido, sustenta que os processos como os controles de natalidade, de mortalidade, de longevidade, das epidemias, da urbanização, as preocupações com as relações entre os humanos, etc., que surgiram em tempos de crises econômicas e políticas, representam o ethos e o lugar de atuação do biopoder ou da biopolítica da espécie humana.   
Nesta perspectiva, FOUCAULT (1999) sinaliza que essa política busca agrupar os efeitos da massa, controlar os eventos que as coletividades podem produzir, controlar suas probabilidades, compensar seus efeitos e limitar o alcance de suas reivindicações.
O Estado racista deseja o controle dos privilégios e o domínio das massas. Ele estabelece um equilíbrio mortífero, determinando os segmentos que serão deixados para morrer e apontando sua contraparte, aqueles que poderão viver. O direito do Estado Liberal, em sua essência, deveria romper com o absolutismo do soberano. Assim, o Estado representaria o poder de fazer viver. No entanto, em sua instância mortífera – deixar morrer ele constitui o racismo como um dispositivo de poder. O autor sustenta que
O que inseriu o racismo nos mecanismos do Estado foi mesmo a emergência desse biopoder. Foi nesse momento que o racismo se inseriu como mecanismo fundamental do poder, tal como se exerce nos Estados modernos. (...) Com efeito, que é o racismo? É primeiro, o meio de introduzir afinal, nesse domínio da vida de que o poder se incumbe, um corte: o corte entre o que deve viver e o que deve morrer. (...) De outro lado, o racismo terá sua segunda função: terá como papel permitir uma relação positiva, se vocês quiserem, do tipo: quando mais você matar mais você fará morrer ou quanto mais você deixar morrer, mais, por isso mesmo, você viverá. (FOUCAULT, 1999 p. 304).
     
Buscar o poder absolutista do soberano é mais que negar reconhecimento à humanidade negra e à sua diferença cultural. É, acima de tudo, legitimar a morte e determinar o genocídio. Por isso FOUCAULT (1999, p. 311) argumenta que “temos um Estado absolutamente racista, um Estado absolutamente assassino e um Estado absolutamente suicida”. O racismo conduz ao extermínio, ele jura de morte aqueles que são seus alvos, mas, ao permitir isso, reinventa a guerra das raças, instituindo a morte de todos contra todos.
 Sendo assim, é necessário reconhecer que o Estado brasileiro ao renegar a origem negra da nação, institui para si e para os cidadãos o branqueamento como ideal social e subjetivo de progresso e civilidade. Isso demonstra que o Estado produz uma ação política onde o racismo é operacionalizado e, consequentemente, procedimentos higienistas e eugênicos são adotados para legitimar a exclusão de parte da população brasileira. Essa circunstancia limita a liberdade e a cidadania da população de origem negra.

Dados apresentados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA revelam que a estrutura política brasileira sustenta um amplo quadro de exclusão e miserabilidade para a população afro-brasileira. A leitura desses dados demonstra, de forma irretocável, que os afro-brasileiros são endereçados à miséria e à morte.  
Portando, podemos considerar que nossa estrutura política articulada às ideologias racistas, legitima as desigualdades de oportunidades entre negros e brancos, elegendo – como revela MUNANGA (2004) – a brancura como ideal social, prescrevendo – de acordo com BENTO (2002) – privilégios para os brancos e instituindo o processo de branqueamento como mecanismo ideológico de ascensão social para os afro-brasileiros – referenciado por SOUZA (1983). Todos esses argumentos nos levam a considerar que o Estado brasileiro é racista.
De acordo com BENTO (2002), essa realidade se radicaliza quando observamos que temos dificuldade em reconhecer as desigualdades raciais e, além disso, não associamos essa situação de opressão à discriminação que os afro-brasileiros sofrem no plano político, econômico e social. Um de nossos entrevistados aponta a dramaticidade dessa realidade existencial. Vejamos o que ele revela:
Se tiver um serviço e você tivesse a mesma idade que eu tiver, se exigisse uma aparência você passaria e eu não. (...) Então essa regra da boa aparência é o racismo cretino, entendeu? Até hoje ainda exigem recepcionistas, não fala mais boa aparência que sabe que ta todo mundo de olho neles, mais não passa. Não é seu perfil. Ce ta com um currículo imenso... não é seu perfil!?

IV – Horizontes de Intervenção: meios de desfazer o nó da questão.
A questão do perfil e da boa aparência apresenta-se como um obstáculo à ascensão social remontando todas as conseqüências que o racismo impõe. Todavia, podemos considerar que uma das alternativas de combate a essa realidade pode ser encontrada na retomada da cultura negra como instrumento de valorização racial e estética necessária à constituição da identidade negra.
CHAUÍ (1995) considera que a arte como manifestação cultural possui um alcance universal e, ao mesmo tempo, mantém sua localidade étnico-racial. A autora utiliza como exemplo a tradicional produção de máscaras e estátuas africanas para exemplificar suas considerações.
O valor universal dessas obras reconhece o belo como atributo da cosmovisão negra. Essa é uma representação artística e cultural relevante, porque a vulgaridade do racismo não permite esse tipo de reconhecimento social e subjetivo. Para CHAUÍ (1995), a arte negra é contracultural, visto que, entre outras coisas, ela se distancia da posição neoliberal com seus grandes eventos de massa e mídia.

Buscar alternativas como essas permitem uma valorização da cultura negra como elemento fundamental para a constituição da identidade racial. Isso nos conduz a pensar, que esse tipo de filiação artística, sendo contra-hegemônica, sustenta um caráter político onde a cultura afro-brasileira acaba por contestar a vulgaridade dos ditames racistas.
Sendo assim, essa cultura, conservando sua filiação étnico-racial, incentiva a elaboração da identidade negra como um tornar-se implicado na superação da desigualdade racial. Mais que isso, ela transmite uma visibilidade à historia de luta dos povos africanos no Brasil. Isso fortalece o olhar de que a ancestralidade africana produziu discursos, danças, músicas, religiosidade, formas de organização comunitárias que remetem os afro-brasileiros a um passado que não se restringe à escravidão e suas conseqüências desumanizados.
Em meio à vivencia da cultura de origem negra imprimimos no Brasil a cosmovisão dos povos que vieram da África, e isso pode nos orientar a lutar contar a opressão imposta pelo racismo porque essa cultura tornou-se afro-brasileira, conservando entendimentos ancestrais que revelam a importância dos negros para o processo civilizatório do Brasil.  
Por isso, compartilhamos da constatação feita por GILROY (2001) de que nos navios negreiros vieram mais que músculos. A travessia do Atlântico imposta pelo tráfico negreiro impôs às metrópoles e ao novo mundo uma presença cultural, artística e social que incide na constituição dessas territorialidades políticas e humanas. 
Viver, reivindicar e reinventar a cultura negra em seus horizontes ancestrais, valorizar seus ordenamentos e suas implicações é um modo de refletirmos sobre nossa história para constituir uma identidade afro-descendente capaz de se contrapor ao processo de branqueamento.

V – Considerações finais:
Desfazer esse nó que a questão racial impõe a todos nós não será uma tarefa fácil. Contudo, é necessário considerarmos que essa é uma questão que toca nos sentidos de nossa liberdade e no valor de nossa cidadania. É preciso estabelecer uma dimensão subversiva para enfrentarmos a opressão, constituir uma instância, mesmo que utópica, para lutarmos por igualdade entre negros e brancos. 

Entretanto, fora da cultura e alheios à história não há nada a ser feito. A cultura brasileira, em suas melhores expressões, é tributaria da cultura africana que foi aqui reinventada e se abrasileirou para se constituir como afro-brasileira. Seus enredos e suas tradições revelam os trajetos da disporá negra em nosso território. Esse trajeto existencial, político e cultural demonstra que o Brasil é um país negro e, sendo assim, superar o racismo e a desigualdade racial torna-se uma necessidade fundamental.

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[i] Mestre em Psicologia Social pela UFMG, Professor do Núcleo de Psicologia do Centro Universitário São Camilo – ES. E-mail: rodriguessr@yahoo.com.br 
[ii] HOLANDA (1995) em Raízes do Brasil considera que o caráter do povo brasileiro é a cordialidade. A mestiçagem serve como um elemento de comprovação desse caráter que, entre outras coisas, contribui para “desmentir” o racismo, ou seja; para fazer crer que não há racismo no Brasil.
[iii] O sentido segregacionista ao qual nos referimos reside na pergunta: é possível ao negro brasileiro tornar-se branco?
[iv] FANON (1983) em Pele negra, máscara branca aponta para essa perspectiva ao analisar a relação do negro com o branco colonizador.    
[v] Contraditoriamente o mito da democracia racial aponta para o falso entendimento de que não há racismo no Brasil. Essa consideração, embora sendo falsa, pode ser observada no cotidiano das relações sociais.  

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