sábado, 8 de maio de 2010

Zé Pequeno um homem de notória estatura


Nos tempos de minha pequenez vivia refugiado nas ruas de minha cidade junto à minha gente. Minha gente e seus diversos ofícios de dar jeito na vida bordando canticas, produzindo tessituras nos textos que a vida apresenta. Esse povo de Nova Era tinha muitos afazeres. Nas ruas, observando os passos alheios se via um ir e vir, prá cima e prá baixo, entregar o pão nosso, o leite, as frutas no lombo de burro, os concertos, acertos, as conversas, as risadas e os desacertos.
Dentre tantos Zé Pequeno era um que me chamava o olhar. Homem pequeno de grande estatura, como pode? Acontece que ele tinha um ofício de grande valia em dias de chuva. Em dias em que as nuvens derramam suas águas nos colocávamos debaixo dos guardas chuvas e dos telhados de nossas moradas. Ocorre que, por vezes, os telhados a exemplo dos guardas chuvas estão abaixo de nossas expectativas. 
Nesses dias de chuva na moleira ou escorrendo pelas paredes Zé Pequeno era sempre lembrado. Todos queriam ter com ele conversa elogiosas e suplicantes. Todos clamavam sua atenção como quem busca algo divino em dias de procissão onde se empenha a fé em atos de contrição.
Nesses momentos, Zé que pequeno era, tornava-se grande, grandemente exaltado, reconhecido e importante. O que provoca os tempos de chuva! Para além dos alagamentos provocados pelo Rio Piracicaba que guarda nossos encantos de encantoria da infância, o excesso de água caindo do céu fazia um homem pequeno crescer à altura que ele não tinha. Seu saber era exaltado e ele tornava-se importante. 
Zé pequeno era um grande carpinteiro, homem honrado pelo ofício de juntar paus, pregos e telhas e desenhar telhados que mais pareciam chapéus sobre as casa dos meus conterrâneos. Os chapéus que ele produzia, que evitavam os infortúnios das águas que vinham dos céus, eram reconhecidos como cheios de belezura, de qualidades, bem feitinhos, desenhados e assentados com cuidados e zelo. A chuva é água que vai onde pode, telha colocada certinhazinha não deixa água entrando em casa de ninguém.
Era assim, com ar de autoridade, que ele decretava a resolução de seus serviços. Algo que deixava todos bem satisfeitos, num contentamento danado de bom. Eta cabra bom de serviço diziam meus conterrâneos acerca de Zé Pequeno.
Eu nada podia dizer sobre suas qualidades de carpinteiro. A única coisa que eu sabia é que São José, meu santinho triste de devoção, era carpinteiro. Ficava na minha inocência imaginando que Zé Pequeno era como uma espécie de São José. Não me parecia um santo gostava de água ardente e se punha a pegar fogo pelas ruas. Mas, seu oficio era quase um milagre, um ato divino, era tão bonito ver seus telhados nos horizontes de nossos olhos.

Eles enfeitavam as alturas das casas, eram diferentes, para cima, para os lados. Em dias de estudos eucarísticos para minha primeira comunhão levei um beliscão severo de minha professora de religião e fé. Dei-me ao direito de levantar a questão de que Zé Pequeno era mais divino, mais filho de deus que os demais. Afinal era carpinteiro como o santo triste de nossa devoção nessas terras que guardam meus passos iniciais.
 A catequista desconsertada não resistiu a minha argumentação. Elogiei os telhados, descrevi as belezuras e as eficiências, a dificuldade de conter as águas e sua natureza fluida. Ela não resistiu e me lascou um beliscão daqueles que ranca carne e dói de montão. Quis chorar e xingar palavrão, sabia um monte de tanto ir ver o Comercial Futebol Clube jogar, entretanto, por dor e receio de não ir parar no céu silenciei.
Menino é bicho encapetado, mas, bem em silêncio jurei vingança. Afinal, Zé Pequeno era quase um santo e São José não haveria de me faltar e nem de concordar com tamanho beliscão. De toda sorte, Nossa Senhora Aparecida poderia me ajudar e me proteger porque eu havia nascido no dia 12 de outubro. Gosto muito dessa santa negra padroeira de meu país. 
Certo é que fiz todos os cálculos e muitos Pai nossos. Entre inúmeros temores iria me vingar e já havia planejado minha devolução da dor daquele beliscão terrível. Pensei muito e de muito pensar resolvi dar um presente a minha catequista. Ela já era uma senhora em seus trajes de viúva e beata, ainda forte e severa, falante e cheia de moralidades. Ela haveria de resistir a meu presente de susto e vingança. E assim, dei início ao plano infalível em minha cabeça de menino encapetado.
No poço das piabas, no fundo de casa, juntos ao bambuzal havia um pequeno córrego que, por razão desconhecida, era chamado de córrego das almas. Cruz credo, Ave Maria, não gostava de pensar no nome, mas, sempre que era hora íamos nos banhar no frescor daquelas águas mornas. E sempre, sempre dividíamos o espaço do pequeno poço com outras criaturas.
Minha idéia de vingança passava por esse lugar de diversão. Tratei de capturar um sapo e logo que pude depositei aquele encanto numa caixinha bem bonitinha. No dia de minha catequese com todos os seus ensinamentos de perdão e coisa e tal, chequei bem cedinho com meu presente.
Sem que as pessoas pudessem ver coloquei minha surpresa na mesa e fui ter com meus colegas. Na hora da aula a catequista, elogiosa e cheia de curiosidade se deparou com minha caixa de Pandora, não resistindo à surpresa colocou-se a abrir o presente. Como um bom presente de grego tão logo o sapo despertou de seu aprisionamento, a catequista se pegou em um desespero absurdo, aos gritos com todos os pulmões clamando aos santos, anjos, arcanjos etc.
Tive um misto de alegria e outro de medo. A catequista pescou meu senso de justiça e tive dúvidas severas acerca da vingança e sua eficiência. Deveras aquele beliscão me doeu muito. Primeiro minhas considerações sobre Zé Pequeno, mais que elogiosas, eram um meio de divinizar um homem simples e tomá-lo alguém importante. Sempre penso que deus aprova esses juizos. Os homens, meus semelhantes, quase sempre deconsideram esse entendimento. Temos inúmeras lembranças que permanecem intocadas como um acontecimento entre outros. Mas, há de se perguntar: temos acontecimentos inesquecíveis que parecem ser insignificantes, mas, eles ficam e voltam inquirindo nossos pensamentos. O passado nunca está tão distante de nós.   
      

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